Um Bom Homem é Difícil de Encontrar, de Flannery O’Connor, foi o
projecto a que o núcleo de teatro da Associação Música XXI se dedicou neste
ano. Num trabalho experimentalista, o grupo de trabalho transformou
O primeiro texto retrata o último
dia de uma família do interior norte-americano dos anos 50, barbaramente
assassinada por um homem a quem chamavam O Inadaptado. Ana Baião optou por
focar a acção nas duas personagens fundamentais, a avó e o Inadaptado,
defendidas por Ana Oliveira e por Bruno Baptista. A psicologia peculiar das
duas personagens confere por si só uma tensão dramatúrgica muito peculiar a
esta cena. A avó, personificando o egoísmo, tenta salvar a sua pele
ultrapassando a dor de ver os membros da sua família desaparecerem um a um,
esforçando-se por converter o homem que constituía a sua obsessão mais
profunda: o assassino fugido da prisão federal que, com modos polidos, destrói
uma família inteira. É a avó a responsável pela mortandade dos seus, uma vez
que reconhece o Inadaptado e o verbaliza. Todo este conto caminha desde o princípio
para o seu fim abrupto. Desde a necessidade que a avó tem de se vestir como uma
verdadeira senhora, com o chapéu e as luvas a condizer com o vestido azul às
pintinhas, para o caso de alguém a encontrar morta na auto-estrada, até a visão
de cinco túmulos quando a família vagueava na auto-estrada. No final, a frase
brutal proferida pelo Inadaptado: “teria sido uma boa mulher se tivesse
encontrado alguém para a matar em cada minuto da sua vida”, encerra o destino
cruel de um crime sem castigo.
O segundo conto, “A gente sã do
Campo”, interpretado por Rita Justino, Ana Oliveira e Bruno Baptista, é uma
metáfora irónica aos subterfúgios da vida. Hope é uma rapariga desencantada que
muda o seu nome para Hulga, originando um desgosto profundo na mãe. Com a mudança
de nome quer mudar a personalidade e o seu lugar no mundo. Não é o doutoramento
em filosofia que lhe confere essa maneira de ver o mundo de forma diferente, é
a mudança no nome que opera a diferença de identidade. Como anuncia a mãe,
“Hulga faz-me lembrar o porão incaracterístico de um navio de guerra”. O
confronto das duas mulheres com o vendedor de bíblias é hilariante, assentando
a acção num diálogo com veios absurdos. Mas a acção adensa-se quando Hulga se
aproxima do vendedor de bíblias. A jovem mulher, portadora de uma perna de pau,
deixa-se seduzir por um vígaro que faz colecção de peças insólitas. De dentro
da bíblia surge uma garrafa que uísque e para dentro da mala de vendedor é
colocada a perna de pau de Hulga, fazendo companhia a um olho de vidro de outra
mulher desencantada. No final, uma vez mais, uma frase do falso vendedor de
Bíblias que remata a história: “Eu nunca acreditei em nada desde o dia em que
nasci”.
O terceiro conto, “a pessoa
deslocada,” é aquele em que a marca da dramaturgia cuidada se fez sentir de uma
forma mais intensa. A pessoa deslocada é um emigrante da Europa que vem criar a
desordem na paz podre que se tinha instalado numa herdade. Ele é eficiente,
educado, polido, e faz o trabalho mais rápido que qualquer um dos trabalhadores
anteriores. É, por isso, um alvo a abater. A visão dramatúrgica deste conto
levou Ana Paula Baião a depurar o texto em frases chave que as duas mulheres,
quais moiras trágicas, iam proferindo, enquanto iam enredando o estrangeiro na
sua teia de destruição. No final, já devidamente embalado, é enviado de volta
para a Europa, a terra de onde vêm todos os males.
A ligação entre os três contos é
feita através de uma mala de viagem, que vai ganhando os despojos de cada
personagem. As luvas da avó, a perna de Hulga, o próprio emigrante na pessoa
deslocada. É a mala que transporta a densidade dramática de cena para cena e a
completa no conto final, quando é enviada para a Europa.
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