Este
ano queremos associar-nos às comemorações do nascimento de Manuel Teixeira
Gomes. Maria Adelaide é um romance da autoria do escritor portimonense que foi
adaptado para teatro por Ana Cristina Oliveira. Nele se evidenciam algumas
formas de viver das gentes em Portimão no princípio do séc.XX, fazendo uma
recriação das artes de amar da burguesia através do olhar crítico e, por vezes,
impiedoso de Teixeira Gomes.
O Autor
A vida política e literária de Manuel
Teixeira Gomes perpassa quase integralmente pelas extraordinárias
transformações que o continente europeu sofreu na segunda metade do século XIX
e primeira do século XX.
Viu Teixeira Gomes o lento e efémero desenvolvimento industrial do seu país no último quartel do século passado. Foi, ele próprio, um dos muitos elos económicos e culturais da ligação ao centro da Europa. Assistiu à intensa contenda política e ideológica no estertor da monarquia portuguesa. Cedo estaria em Londres representando arduamente a jovem república, mal vista por uma velha monarquia que, de longe, sobranceira, se habituara a dirigir politicamente e a explorar economicamente o pequeno rectângulo. Ainda aí, estaria no centro das negociações que levariam Portugal, limitada mas dolorosamente, a intervir no primeiro grande conflito imperialista e participaria, de igual modo, nas tentativas de solução das sequelas da guerra.
Apesar da cauta ironia do escritor, é manifesto o reflexo do lápis azul sua actividade, obrigando-o a renunciar à escrita de artigos de índole sociológica e politica como o curioso e praticamente desconhecido Da dignidade do trabalho manual, não incluído nas suas obras completas e que fora publicado em 1/11/1931 no n.º 129 do «Liberdade», artigo que constitui elemento importante para a compreensão da trajectória ideológica de Teixeira Gomes no percurso final da sua vida.
A censura não lhe pouparia ainda, por exemplo, «Maria Adelaide», no ano exactamente em que fora dado à estampa (1938).
Sobre o texto
A escrita de Teixeira-Gomes é sempre
uma grata descoberta para qualquer leitor, mas sê-lo-á, sobretudo, para o
leitor menos familiarizado com a sua mundividência, com a sua peculiar forma de
assimilar e descrever a vida numa perspectiva repleta de sensualidade. Em Maria
Adelaide impõe-se o deslumbramento estético perante o ser feminino a par de uma
crueldade masculina, típica do enquadramento cultural da época. Neste texto
convivemos com as crenças, com o modo de viver de uma certa burguesia, mas
também com o amor envolto num jogo de crueldade que permanecem ao longo das
épocas.
Maria Adelaide, obra-prima de Manuel
Teixeira-Gomes, é um romance escrito em 1937, no exílio, em Bougie, já no ocaso
dos seus 77 anos, quando o viajante, o incontido amante da beleza e da arte, o
resignado Presidente da República deixa que o seu olhar se perca pela memória
na distância do mar azul da Argélia. E, talvez, esse conjunto de peculiares
circunstâncias contribua para a ambiência deste romance entretecido por
momentos de profunda amargura e crueldade, porém sempre lúcido e suportado por
uma escrita límpida e elegante.
Um dos grandes eixos da narrativa será
o da assunção do instinto “natural” que procura realizar-se num triunfo
absoluto do princípio do prazer. È sob esta égide que se vão posicionando as
personagens construindo uma relação, na essência, desigual entre o rico e a
pobre, o homem maduro e consciente do seu jogo e a mulher jovem, quase
adolescente, quase “inocente”. E este equilíbrio naturalmente instável
adensa-se através de uma relação amorosa de difícil coabitação, em que o
objecto do desejo é-o apenas como foco de atracção, enquanto nela se mantiverem
estimulantes a frescura do corpo e certa inocência do social e do moral… A
jovem sensual obtém o raro privilégio de se sentir profundamente desejada, mas
também a amarga contrapartida de não ser reconhecida nem respeitada enquanto
mulher!
Maria Adelaide assume-se, assim, como
um romance do instinto do desejo, e de tal modo o confessa e denuncia que anula
a própria morte e a sua dor para se projectar numa nova descoberta do puro
desejo. Como bem nota Urbano Tavares Rodrigues no final do seu prefácio à obra,
“É um bárbaro hino aos sentidos, mas não só. É sobretudo um difícil desmascarar
do homem e dos seus abismos. O mais desonesto é o mais honesto fim da comédia.”
A Adaptação Dramatúrgica
A adaptação dramatúrgica feita ao
romance Maria Adelaide, de Teixeira Gomes partiu da inquietação tremenda que a
leitura desse texto operou em mim.
Teixeira Gomes conduziu-me a um
Algarve do princípio do séc. XX no qual as mulheres eram seriamente desrespeitadas
nos seus direitos. Não eram escolarizadas, não tinham direito a expressar a sua
opinião, não tinham direito a voto, valiam pela capacidade de procriar ou pela
sua beleza.
Maria Adelaide era uma dessas
mulheres. Filha de pescadores, mulher admirada pela sua beleza, deixou-se
deslumbrar por um homem de posição social superior à sua que, pelo facto de a
ajudar economicamente lhe conferia uma posição dominante. A relação
desequilibrou-se pelo ciúme doentio de Maria Adelaide e pela ânsia inconsequente
de liberdade que Ramiro D’Arge procurava.
A indignação do meu ser feminino
obrigou-me a procurar um restabelecimento da ética na relação desequilibrada.
Para promover esse equilíbrio criei duas personagens que simbolizam as
consciências dos protagonistas, permitindo assim que Maria Adelaide interpele
Ramiro D’Arge de igual para igual. Ultrapassando as acusações habituais que
amiúde surgem em relações disfuncionais, neste confronto há o ganho de
consciência de Ramiro D’Arge e uma dignificação da figura de Maria Adelaide que
poderá apaziguar o espírito de quantas continuam a ser tratadas como criaturas
inferiores.
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