terça-feira, 5 de julho de 2016

Clarinda Veiga-Pires - Uma carta do exílio


Argel, 24 de Fevereiro de 1963

Amor,
Recebi a tua carta.
A cidade é grande e bonita, sem nada de estranho, como qualquer cidade europeia. Talvez até mesmo Porto ou Lisboa. Os argelinos no contacto de rua (o único que conheço) são muito gentis, sendo-o mesmo para os franceses. Soldados e freiras francesas continuam passeando nas ruas e cafés como se uma guerra de 7 anos não tivesse havido entre eles. Nas ruas não se sente que esta guerra tenha acabado só há 6 meses.
Esta malta que chegou vai organizando lentamente a vida: alguns já estão a trabalhar há 3 ou 4 semanas, arranjaram casa, roupa e comida, mas sem cadeiras, mesas, camas, etc.
Cheguei em muito má altura porque com as festas nacionais do Ramadão tudo está paralisado. É uma semana perdida. Estou num hotel com outro até 4ª feira tudo comece novamente.
Quanto à tua vinda não me parece que seja possível até às férias grandes. Não só porque se torna necessário um pouco de mais organização para absorver a mão-de-obra, como comporta um certo risco de vida porque esta ordem pode ser só aparente. Dir-te-ei o que me vai acontecendo e, com base nisso vamos vendo.
Para além do que acabo de te dizer deves ponderar:
1-      Não há correspondência direta com Portugal;
2-      Se o nosso governo sabe de qualquer modo da tua entrada aqui não poderás voltar a Portugal e por quanto tempo?
Desde 1945 que se pensa: dentro de 6 meses será o fim de Salazar…
Um sacrifício destes só se aguenta com uma formação política que o justifique. Para ti haverá uma justificação. Mas para a tua mãe, será justo? Vai pensando bem para haver  plena consciência, qualquer que seja a atitude.

Muitos beijos, saudade e amor do Helder que nunca te esquece.

Sem comentários:

Enviar um comentário